Uma das virtudes da democracia é sua capacidade de se aperfeiçoar.
Aqui no Brasil é geralmente aceito que estamos em democracia desde 1985 e
que ela foi formalizada com a Constituição de 1988. Desde então o
sistema democrático não deixou de se mover e de sofrer emendas e
alterações para o bem ou para o mal, como é próprio de todo ser vivo.
A introdução na Constituição Federal do instrumento Medida Provisória
(MP), artefato típico do parlamentarismo italiano, foi uma
incongruência ou um mal entendido. Aconteceu que quem teve votos
suficientes para aprovar a introdução do instituto MP na Constituição
não teve votos suficientes para aprovar o sistema de governo que lhe
corresponde, o parlamentarismo. A maioria dos constituintes optou pelo
sistema presidencialista.
Nasceu assim um Frankenstein, paradoxalmente apoiado por muitos
constituintes sinceramente comprometidos com a democracia, mas
engabelados por miragens parlamentaristas, agitadas por adeptos dessa
corrente. Eles terminaram por ajudar a criar um modelo que atribuía
poderes excessivos ao Executivo e subtraía poderes do Congresso
Nacional.
A experiência da utilização das MPs confirma essa percepção, embora
ela só tenha ficado completamente clara sob o governo FHC (1995-2002).
José Sarney só pôde emitir MPs, depois da promulgação da Constituição,
em 5 de outubro de 1988, mesmo assim precisou aguardar a regulamentação
da utilização do instrumento e, naquela altura, só dispunha de pouco
mais de um ano de um mandato declinante. Fernando Collor governou pouco
mais de dois anos e meio, não chegou a se estabilizar, mesmo assim
causou sérios danos utilizando MPs. Itamar Franco fez um governo de
coalizão, quase de unidade nacional; foi, portanto, moderado até na
utilização das MPs.
Foi sob FHC que a utilização de MPs, tal como estavam regulamentadas à
época, mostrariam com clareza todo seu potencial destrutivo. Naquele
período as edições e reedições de MPs careciam de limites, o presidente
da República podia reeditar suas MPs a cada 30 dias, inclusive incluindo
matérias novas e alterando redações anteriores. Aquilo era um petardo
superior aos decretos leis da ditadura.
Essa frouxidão permitiu que, sob FHC, num período de oito anos, 5.400
MPs tenham sido editadas e reeditadas. Muitas dessas MPs em constante
mutação nunca foram votadas e constituem hoje uma espécie de lixo tóxico
do neoliberalismo perambulando por limbos e regiões inexploradas de
nossa galáxia legal, embora já tenham produzido seus efeitos nefastos.
As outras foram votadas de forma simbólica pelo Congresso Nacional
praticamente sem debate. O resultado objetivo desse processo foi uma
drástica redução do papel do Congresso Nacional no processo de tomadas
de decisões da República até a promulgação da Emenda Constitucional nº
32/2001, em 11 de setembro de 2001.
Essa emenda constitui hoje o artigo 62 da Constituição Federal que
proibiu as reedições de Medidas Provisórias e estabeleceu uma extensa
lista de temas que não podem ser tratados por MPs. Graças à emenda
constitucional, duramente batalhada pelos partidos que então formavam a
oposição, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foram
emitidas apenas 419 MPs. Já no governo da presidenta Dilma Rousseff as
MPs emitidas somam apenas 96, até o dia 5 de junho último.
Mas cabe ressaltar uma diferença essencial: todas as MPs editadas por
Lula e por Dilma tramitaram sob o rito estabelecido pela emenda nº 32 e
foram discutidas pelo Congresso Nacional. Algumas foram rejeitadas,
outras caducaram porque venceu o prazo da tramitação e outras foram
aprovadas, quase sempre com alterações propostas por congressistas. Ou
seja, de 2003 para cá o Congresso Nacional recuperou poderes sobre o
processo legislativo.
Embora a Emenda Constitucional nº 32/2001 tenha melhorado
significativamente o processo legislativo e tornado efetivo o poder do
Congresso Nacional nesse campo, não se pode esperar o milagre de que
seus autores tenham produzido a quimera de uma legislação perfeita.
Decorre daí a conclusão de que qualquer democrata tem o dever de
examinar e discutir as reclamações quanto aos chamados excessos de MPs.
Como existe uma predisposição para aperfeiçoar a democracia, neste
momento tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Emenda
Constitucional nº 70/11, de autoria do senador José Sarney (PMDB-AP),
que altera o rito da tramitação das MPs. Essa PEC foi aprovada no Senado
por unanimidade e tramita agora na Câmara dos Deputados. Na Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara, foi aprovada sua admissibilidade, nos
termos de relatório de autoria do deputado Ricardo Berzoini (PT-SP).
Agora cabe ao presidente da Câmara nomear a Comissão Especial para
discutir o mérito da matéria, o que está previsto para breve.
Destaco dois pontos importantes da PEC. Ela elimina a Comissão Mista
(Senadores e Deputados) encarregada de emitir parecer sobre as MPs.
Atribui à Comissão Constituição e Justiça de cada uma das Casas, atuando
separadamente, a emitir parecer sobre a admissibilidade de cada uma das
MPs que venham a ser enviadas ao Congresso Nacional. As questões de
mérito serão tratadas diretamente no plenário, com isso pretende-se
abreviar o trâmite.
Além, disso, a PEC 70/11 propõe estabelecer um prazo de oitenta dias
para que a Câmara discuta cada MP e de 40 dias para que o Senado proceda
à mesma discussão. Esgotados os prazos citados, na falta de
deliberação, a MP perde validade. Como se vê, o Poder Legislativo está
vivo e atuante no aperfeiçoamento da democracia. Se houve orgia de
Medidas Provisórias isso não aconteceu agora, aconteceu sim no período
em que os tucanos governaram o País.
Deputado José Guimarães é líder do PT na Câmara e membro da Executiva Nacional do PT
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