terça-feira, 21 de junho de 2011

Ministra Tereza Campello fala à Carta Capital

Força-tarefa contra a miséria: assim a ministra do Desenvolvimento Social define o plano de tirar 16 milhões da extrema pobreza

A SERGIO LIRIO

Desde janeiro, a mínistra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, enfrenta dois desafios da mesma forma: com discrição. O primeiro, um drama pessoal, parece definitivamente vencido. Em abril último, a ministra encerrou o tratamento de um câncer de mama descoberto no fim de 2010. Tereza sente-se renovada com os primeiros fios de cabelo que nascem após o término das intensas sessões de quimioterapia “Acho que me caiu bem esse cabelo curto”, brinca durante a entrevista. O segundo desafio acaba de começar e a forma de combatê-lo foi urdida com muitas horas de trabalho nos cinco primeiros meses de governo. Coube à ministra formatar e caberá a ela conduzir o mais ousado plano na área social da administração Dilma Rousseff, o Brasil sem Miséria. O objetivo é até 2014 tirar da extrema pobreza 16 milhões de brasileiros que são o retrato acabado de nossas mais profundas desigualdades: 71% são negros, metade vive na zona rural, 40% têm menos de14 anos. “Aprendemos uma lição nos últimos anos. Só é possível crescer hoje com inclusão social.” A seguir, a ministra explica o plano e rebate as primeiras crîticas.

Carta Capital: Há quem diga que o Brasil sem Miséria não passa de um reempacotamento dos programas sociais já existentes…
Tereza Campello: Não é verdade. Trabalhamos com um plano mesmo, cujo objetivo é atender 16 milhões de brasileiros em situações absolutamente diversas. Não existe uma solução única. Além disso, consideramos insuficiente trabalhar exclusivamente com a ideia de transferência de renda, embora este seja um componente importante do plano. O Brasil de hoje cresce em todos os sentidos: nas cidades, no campo, no Sul e no Norte. Tem oportunidades para todo mundo. Engana-se quem pensa que os mais pobres querem receber uma grana por mês para não fazer nada. Querem a oportunidade de participar do crescimento. De trabalhar, de abrir seu próprio negócio, de estudar, de ter acesso a serviços. O plano responde a este momento da realidade brasileira. Seu objetivo é melhorar a capacidade dessa porção totalmente excluída.

CC: Mas o que há de diferente no que tem sido feito até agora?
TC: Antes, é preciso ressaltar: o Brasil vai continuar a apostar no que tem dado certo, a inclusão econômica e social dos brasileiros. Há quem diga que o governo Lula foi bem-sucedido por ter crescido e distribuído renda. Penso diferente. Só crescemos por termos distribuído renda. Se isso funcionou tão bem, por que mudaríamos tudo? Outra coisa: muitos dos programas sociais brasileiros são elogiados e copiados mundo afora. Temos soluções inovadoras. Pergunto novamente: por que não melhorar o que já fazemos com excelência? O Bolsa Família é o maior programa de transferência de renda do mundo, e o mais bem focalizado, como reconhecem as Nações Unidas e o Banco Mundial. Só não têm algo semelhante ao Bolsa Família países extremamente ricos. Mas o nível de inteivenção do Estado, em diferentes sentidos, se dará em uma escala muito maior. E queremos tratar o indivíduo como indivíduo, por isso a importância de lidar com inteligência com a grande quantidade de informações disponíveis.

CC: O Brasil sem Miséria prevê uma importante participação de estados e municípios. Isso não tende a dificultar a execução?
TC: Quem fez o Bolsa Família em parceria com a União foram os municípios. O recurso é federal, mas a execução é municipal. São as cidades que organizam e cadastram os beneficiários. Essa é a base de sucesso do Bolsa e é a partir dessa experiência que organizamos o Brasil sem Miséria. O cadastro das famílias mantido pelos municípios reúne dados essenciais: quantos integrantes, quem estuda, se tem idosos ou deficientes, se os familiares têm acesso a atendimento de saúde etc. Há um conjunto de informações essenciais que nos permitirá agir com bastante foco. Estamos organizando o Estado e o País para cumprir uma meta. Não vamos contratar um monte de servidores públicos. O Bolsa Família tende a ser um programa permanente, mas o Brasil sem Miséria começa agora e termina em 2014, é uma força-tarefa para acabar com a extrema pobreza nesse prazo. É um recorte de políticas com uma meta clara e específica, que será acompanhada e aprimorada ao longo dos próximos anos.

CC: Vencer a pobreza extrema no meio rural é tarefa complexa, não?
TC: Por isso vamos começar pela zona rural do Nordeste. A intensidade da pobreza no campo é muito mais grave que na cidade. De cada quatro moradores do meio rural, um é extremamente pobre. Mas há uma diferença: em geral, são assentados ou agricultores familiares. Portanto, ao contrário dos trabalhadores urbanos, eles têm terra. Ela pode ser insuficiente ou de dificil manejo, como no Semiárido, mas é um meio a ser explorado a favor dessa população. Vamos contratar equipes técnicas para analisar o cultivo e ajudá-los a ganhar produtividade. Isso será feito de acordo com o calendário agrícola, baseado em um cronograma organizado. Cada equipe será formada por um técnico de nível superior e dez de nível secundário, de preferência que vivam e conheçam a região onde vão trabalhar. E com preparo para atender as famílias. Por exemplo: teremos especialistas em caprino cultura atuando na região do Ceará com essa vocação. Vamos tentar melhorar o que essas famílias já fazem. A assistência técnica vai acompanhá-las por dois anos. O governo colocará à disposição, a fundo perdido, 2,4 mil reais por família, em quatro parcelas de 600 reais, para que elas invistam na propriedade. Seja para melhorar o galinheiro, cercar a área onde ficam as cabras, ou aumentar a produtividade do plantio do feijão. Os agricultores receberão sementes da Embrapa, terão acesso a água, caso não a tenham, serão ligados à rede de luz, se assim for necessário. As equipes também fornecerão informações mais completas sobre essas famílias. A partir desses dados, poderemos levar os serviços públicos até essas pessoas, que, em geral, nem sequer sabem quais são seus direitos.

CC: A ideia é só garantir o sustento próprio ou integrá-los ao mercado?
TC:Todos receberão o Bolsa Família, portanto, imaginamos que o mínimo sustento estará garantido. As outras ações são para estimular o aumento da produtividade. E não somente para o consumo próprio. Queremos criar alternativas de comercialização do excedente. Acreditamos que 70% dos beneficiados terão condições de produzir para além do autoconsumo, produzirão excedente.

CC: Como comercializá-lo?
TC: Vamos nos organizar em duas frentes. A primeira vai ampliar de forma extraordinária o programa de compras da produção da agricultura familiar. Já temos quase 160 mil agricultores fornecendo regularmente para a Conab. Parte vira estoque, parte é distribuída como cesta básica para populações contempladas por programas de segurança alimentar ou é usada na merenda escolar. Vamos quadruplicar os recursos da Conab até 2014, de 680 milhões para 2 bilhões de reais. O programa de aquisição de alimentos permitiu à agricultura familiar organizar-se de forma muito eficiente. Ao criar demanda firme, ele dá horizonte aos produtores. A Conab ensina, por exemplo, a emitir nota fiscal, a participar ou organizar cooperativas, a montar o próprio negócio. O número de agricultores extremamente pobres que vendem ao Estado deve subir de 66 mil para 255 mil, ou seja, metade das famílias pobres no setor rural será incluída. Além disso, começamos a negociar com restaurantes e supermercados para que comprem da agricultura familiar. A Conab vai recolher a produção e oferecê-la em pontos de distribuição de fácil acesso. Vamos incluir esse pequeno produtor em uma rota comercial. E veja, não é caridade. Será uma oferta de produtos de primeira qualidade, produzidos com sementes da Embrapa, com apoio técnico, só que na terra de um agricultor extremamente pobre. Todos vão ganhar. O agricultor familiar conseguirá escoar sua produção, o Brasil incentivará a diversificação e o aumento da oferta e a população terá acesso a produtos de primeira qualidade e geralmente produzidos perto de sua casa. Há ainda outro componente, antenado às necessidades de sustentabilidade. Tentaremos evitar que o produto seja transportado por longas distâncias, por caminhões ou aviões que emitem gases de efeito estufa. Queremos que ele seja comercializado localmente, regionalmente.

CC: Há uma questão filosófica aí: como transformar o incluído economicamente em um cidadão no completo sentido da palavra?
TC: Cidadão no sentido de que ele é ignorado hoje pelo Estado, não? Porque, em muitos casos, são famílias bem organizadas, minimamente estruturadas, principalmente essas da área rural do Nordeste. Mas elas, em geral, nem têm ideia de como acessar o Estado, de cobrar pelos serviços. E elas nunca serão atingidas se não formos até eles.

CC: Como o governo chegou aos 16 milhões de beneficiados? Os críticos dizem tratar-se de um número pensado eleitoralmente.
TC: Arbitramos uma linha de corte. O que é extrema pobreza? Cada pesquisador tem sua opinião. Há quem aponte dezenas de linhas de pobreza. Isso talvez seja interessante para fins de pesquisa, mas não para a execução de políticas públicas. Definimos que o nosso alvo são as famílias com renda de 70 reais per capita. O Bolsa Família tem dois tetos: até 70 reais, os extremamente pobres, e de 70 a 140 reais, os pobres. Os dois grupos recebem o Bolsa, mas quem tem renda de até 70 reais embolsa uma parcela fixa, além das variáveis que dependem de alguns critérios (se o filho está na escola ou não, por exemplo). Além disso, o valor coincide com o que internacionalmente é considerado extrema pobreza. A ONU estabeleceu o rendimento diário de 1,25 dólar, o que, na cotação de hoje, dá perto de 67 reais no mês. Então, é simples: definimos o valor de 70 reais, pegamos o último Censo do IBGE, fizemos as contas e chegamos aos 16 milhões de brasileiros. E uma população extremamente frágil: 60% está no Nordeste, 71% é de negros, metade na zona rural, apesar de só 15% da população viver no campo, e 40% tem menos de 14 anos. É entre crianças e adolescentes que se concentra a maior fragilidade.

CC: Qual o principal desafio para reduzir a extrema pobreza urbana?
TC: Melhorar a capacidade de arrumar trabalho. Vamos oferecer 1,7 milhão de vagas nesses quatro anos, é o compromisso da presidenta Dilma Rousseff. Nosso objetivo é discutir com os gestores do sistema S (Sesi, Senai, Senac) maneiras de adaptar os cursos para essa população. Falamos de analfabetos ou gente com baixíssima escolaridade, com menos de quatro anos de estudo. Além do apoio profissional, será preciso oferecer reforços de português e matemática, por exemplo. Há uma história em Osasco, simbólica do que falo. Eles ofereceram um curso de auxiliar de cozinha para dezenas de mulheres. Terminado o curso, as estudantes não conseguiram emprego, apesar de haver vagas. O motivo? Muitas não tinham dentes. Não eram contratadas não por estética, mas por uma questão de higiene básica. Então, faz sentido acoplar um atendimento odontológico ao curso de auxiliar de cozinha. Veja o caso da construção civil. Hipertensos e diabéticos não são contratados para um trabalho que exige tanto esforço físico, embora muitos tenham qualificação profissional. Portanto, não faz sentido alguém que tenha uma dessas doenças fazer um curso para trabalhar em obras. Não vamos capacitá-los apenas do ponto de vista profissional. Na outra ponta, preparamos um mapa de ofertas, de oportunidades. Vamos olhar cidade a cidade, estado a estado. Não faz sentido oferecer um curso de camareira onde não há ou não haverá hotéis. Temos um banco de dados diversificado, estamos em contato com associações comerciais e industriais. E há os grandes empreendimentos, as grandes obras de infraestrutura.

CC: As politicas sociais e o aumento do salário mínimo mudaram a dinâmica da economia brasileira. A senhora imagina que o Brasil sem Miséria terá impacto semelhante?
TC: Esses 16 milhões não produzem e estão fora do mercado. Consomem só o básico. Será um reforço ao colchão que criamos nos últimos anos. Por que o Brasil não chegou ao fundo do poço na crise de 2008 e por que fomos o primeiro país a sair dela? Por termos esse colchão, formado pelas políticas sociais, pelos ganhos reais de salário, pela consolidação da agricultura familiar. Cada real aplicado no Bolsa família gera 1,44 real à economia como um todo. O Brasil inteiro ganha. O dinheiro do Bolsa Família viabiliza que as pessoas comam, que se locomovam, que comprem material escolar, vestimenta, produtos de limpeza, de higiene pessoal. Temos um País cheio de oportunidades e as pessoas não querem ficar em casa recebendo 115 reais por mês. Ao contrário do que muitos pensam, o Bolsa Família não sustenta “vagabundos”. Mais de 70% dos beneficiados trabalham. O problema é que suas ocupações são precárias, insuficientes para garantir uma renda minima para alimentar a família. Na dinâmica atual do Brasil, as pessoas querem acesso às oportunidades. É um excelente momento para realizar uma inclusão produtiva.

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